Viajar pode trazer experiências novas e extraordinárias, mas também ser aterrorizante para pessoas com deficiência ou ansiedades relacionadas a viagens. Porém, permitir-se sentir seus receios iniciais e aos poucos lidar com eles pode abrir portas para jornadas incríveis.
Com Retinose Pigmentar (RP), uma condição ocular hereditária que causa a perda gradual da visão e leva à cegueira, eu percebi que viajar não se trata de ‘”superar” esses medos, mas sim de enfrentá-los e abraçá-los, um passo de cada vez.

Compreendendo o medo de viajar em si
É completamente normal sentir ansiedade para viajar quando você tem uma deficiência visual. Muitas vezes, uma viagem significa navegar por novos ambientes e depender de pistas visuais para se sentir seguro e orientado – coisas que podem ser problemáticas quando sua visão é limitada.
Sem os pontos de referência habituais, até tarefas simples como encontrar um portão ou ler placas talvez causem desconforto.
Esse medo não significa que falte coragem; ele simplesmente reflete as camadas adicionais de planejamento e confiança necessárias para nos sentirmos seguros em nossa jornada. Reconhecer esses sentimentos como válidos é o primeiro passo para enfrentar a viagem com segurança e autocompaixão.
Através da prática do mindfulness, concentrando-se 100% no presente, e de preparação meticulosa, descobri que viajar pode se tornar um espaço de exploração, autodescoberta e autocompaixão.
Depois de muitos anos viajando para o Grupo LEGO na posição de Diretor de Artes Sênior, e posteriormente como palestrante internacional independente, criei este guia com passos gentis e práticos para lidar com o medo de viajar e criar uma experiência que pareça segura, respaldada e aberta à descoberta.
8 dicas para enfrentar seu medo de viajar
O que todas estas dicas têm em comum é que se abrir sobre sua situação levará você mais longe. Nem sempre é fácil compartilhar com estranhos suas necessidades específicas, afinal, isso pode desencadear sentimentos de inadequação. Mas o primeiro passo em sua jornada é justamente superar esse desafio. Quanto mais você se abrir sobre o que precisa, mais fácil será viajar.

1. Bom planejamento e comunicação clara
Antes de viajar, eu sempre entro em contato com a companhia aérea para avisá-los sobre minha situação e necessidades. A maioria das companhias oferece assistência, e é essencial organizar isso com antecedência. Eu percebi que quando comunico claramente minhas necessidades, recebo na maioria das vezes o devido atendimento em tudo, desde o check-in até o embarque.
Nos dias que antecedem minha partida, sempre reflito sobre como gostaria que a viagem se desenrolasse. Mentalmente, eu me vejo chegando no aeroporto, fazendo o check-in e passando pela segurança.
Conforme vou passando por esses cenários, pratico uma respiração lenta e profunda para ajudar meu corpo a se adaptar à ideia. Dessa forma, fico mais bem preparado para lidar com situações tensas com calma, à medida que elas vão surgindo.
2. Uso da tecnologia e aplicativos
A tecnologia é um recurso indispensável sempre que viajo. Além do aplicativo da companhia aérea que baixo com antecedência para receber atualizações do voo, também uso meu smartwatch para ter acesso rápido ao cartão de embarque, tornando minha passagem pelo aeroporto muito mais dinâmica. Em vez de ter que procurar pelo cartão impresso, eu posso escaneá-lo rapidamente com meu relógio.
Além disso, meu relógio também tem programa de navegação, algo super útil enquanto transito pelo aeroporto. Ele me indica para qual direção ir, o que me permite encontrar mais facilmente o caminho para o portão de embarque ou retirada da bagagem, se eu estiver viajando sem assistência. Isso me ajuda a me sentir mais independente, diminuindo minha necessidade de contar com outras pessoas para circular por ambientes desconhecidos.
Qualquer smartwatch com GPS serve, mas pessoalmente prefiro um Apple Watch, visto que já tenho um iPhone, e os dois dispositivos funcionam muito bem juntos. Faça seus próprios testes para ver com quais dispositivos você melhor se adapta. Vale ressaltar ainda que essas soluções dependem da qualidade da conexão à internet e de outras condições estruturais do aeroporto.

3. Passe pela segurança com paciência consciente
Passar pela segurança do aeroporto pode ser estressante para todos nós, mas como alguém legalmente cego, preciso ser extra paciente. Quando chego ao ponto de controle, informo aos agentes que preciso de assistência e sigo todas as instruções, sem afobação. Com uma atitude positiva e paciente, descobri que a maioria das pessoas está disposta a ajudar.
Lembro-me muito bem de uma viagem a Londres em particular. Os agentes de segurança não estavam familiarizados com deficiências visuais e não entenderam minhas necessidades num primeiro momento. Eu expliquei tranquilamente minha situação e, depois de uma breve conversa, um supervisor chegou para me ajudar. Foi uma experiência que me lembrou de manter a calma e me comunicar com clareza – funciona sempre.
4. A bordo do avião
Quando embarco no avião, é importante para mim me acomodar e me familiarizar com meu assento e arredores. Os comissários de bordo geralmente são muito prestativos e podem explicar onde estão localizadas as saídas de emergência, cinto de segurança e outros recursos importantes. Eu costumo perguntar o caminho até o banheiro ou outros pontos essenciais da aeronave.
Lembro-me de um voo em que a comissária, ao perceber minha bengala, tomou seu tempo para me explicar como eu poderia me locomover pelo avião. Essa experiência ressaltou o quão importante é explicitar nossas necessidades, demonstrar confiança, fazer perguntas e obter as informações necessárias para nos sentirmos mais independentes durante o voo.
5. Mindfulness e calma durante a viagem
Como instrutor de cursos de mindfulness, eu entendo a importância de trazer consciência para o momento presente, principalmente em situações de estresse. Quando sinto meu coração acelerar devido ao esforço de passar pela segurança e transitar pelo aeroporto, eu não resisto à tensão; em vez disso, eu a aceito, reconhecendo-a como um sinal de que minha mente está em conflito com a situação atual. Com o que estou vivenciando agora. Então, em vez de resistir, eu me abro completamente para esse sentimento, observando como meu corpo reage, sem julgamentos.
Com cada respiração, volto à calma interior, ancorando minha consciência nas sensações do meu corpo – dos meus pés no chão, minhas mãos, e sons que escuto ao redor. Aceitando meu presente, convido a paz à minha experiência. Eu crio paz interior em meio ao caos exterior Eu não resisto, permitindo que meu corpo e mente entrem em um estado natural de harmonia.
Eu criei uma meditação guiada, “Simplesmente aqui, agora” que pode ajudar você a explorar e praticar isso. Ouça mais meditações guiadas aqui.

6. Abra-se à possibilidade de receber ajuda
Embora valorize minha independência, aprendi a aceitar ajuda quando ela é oferecida. Os funcionários das companhias aéreas e dos aeroportos costumam ser atenciosos e prestativos, e quando estou aberto a receber assistência, sorridente e grato, isso pode criar uma experiência melhor durante minha viagem.
Uma situação memorável foi quando precisei encontrar minha mala após o pouso e um outro passageiro ofereceu ajuda de livre e espontânea vontade Sua gentileza me lembrou que há pessoas ao nosso redor que genuinamente querem nos ajudar e que está tudo bem aceitar.
7. Adaptação ao destino
Quando chego ao meu destino, eu procuro me orientar. Eu peço ao pessoal do hotel um pequeno tour pela propriedade e aprendo onde as diferentes instalações estão. Ao tomar meu tempo para fazer isso, eu rapidamente me familiarizo com meus arredores e posso me locomover com maior confiança.
No passado, eu passei por apuros tentando me localizar nos hotéis e outros lugares parecidos, mas recorrendo ao meu GPS e ao pessoal do hotel eu consigo as informações que preciso. Este preparo me dá a liberdade de me mover e explorar o local do meu jeito.
8. Cuide das suas coisas
É sempre importante manter o controle sobre os seus pertences, mas para alguém que é legalmente cego, isso é ainda mais crucial. Eu sempre me certifico de trazer sacolinhas para levar minha lanterna, bengala e óculos de sol, para que eu os tenha sempre à mão.
Também sigo uma rotina bem definida, sempre colocando minhas coisas nos mesmos lugares da mochila, para não ter que procurá-las sempre que preciso delas. Isso me ajuda a economizar minha energia.
Lembro-me de uma vez em que não conseguia achar meu celular no hotel. Os móveis do quarto eram escuros e, a iluminação, bem fraca, então demorei um pouco até encontrá-lo. Foi um momento estressante que eu poderia ter evitado se tivesse escolhido um local específico para o meu telefone em vez de colocá-lo aleatoriamente em qualquer canto. Mas assim aprendemos com nossos pequenos erros, e os erros podem se transformar em sabedoria.
"Da Rua da Desesperança ao Caminho da Possibilidade"
Viajar na pele de alguém que é legalmente cego pode parecer particularmente complicado, mas com preparo, tecnologia, mentalidade positiva e presença consciente, é possível navegar por tais experiências com confiança.
Comunicando-se de forma clara, usando as ferramentas certas e estando aberto à ajuda, é possível abordar essa experiência com autoconfiança e independência. Não se trata necessariamente de superar o medo e o desconforto da viagem, mas sim de desafiar a si mesmo a encarar esse medo, abraçando e transformando seus temores em sabedoria.
Nossas adversidades podem nos ensinar sobre nós mesmos, e meus desafios continuamente me ensinam novas formas de me adaptar. Eles me lembram que situações desfavoráveis são uma oportunidade de crescer e explorar o mundo, não importa os obstáculos à sua frente.
O que eu aprendi
A perda da visão e minha vida de presença consciente me ensinaram a permanecer calmo quando confrontado com o inesperado. Essa capacidade de encontrar a "Paz Interior em Meio ao Caos Exterior" é algo que hoje compartilho com meus clientes, assim como em minhas palestras e oficinas. E também é o tema do meu livro, "Sentenciado à cegueira – e agora?" (do título em inglês, Sentenced To Blindness – Now what?).
Para mim, viajar não se trata apenas de chegar ao destino, mas também de estar presente ao longo do caminho e enfrentar desafios com uma mentalidade aberta e tranquila. Eu chamo isso de passar "da Rua da Desesperança ao Caminho da Possibilidade" (do vídeo em inglês, Hopelessness Street to Possibility Road).